O dilema contemporâneo e a Novíssima Medicina II – O Estadão – 27/07/2023

Por Paulo Rosenbaum

O dilema contemporâneo e a Novíssima Medicina* (Aspectos da Diversidade Metodológica nas Ciências Médicas (II)* *

Apresento mais um artigo da série “Aspectos da Diversidade Metodológica nas Ciências Médicas”. Não é incomum ouvir falar sobre as crises da Medicina. Mas, por mais que sejam esmiuçadas, não costumam representarameaça de esgotamento do modelo científico sobre o qual a Medicina se apoia. Pelo contrário, a hegemonia do método científico corrente é cada vez mais sólida e abrangente. Pois, então, onde é que ela, a tal crise, estaria? A pandemia suscitou alguns problemas na metodologia e abordagem científica, abalou alguns atavismos, mas nem chegou a balançar o edifício sobre o qual se apoia a tecnociência contemporânea. As questões não podem estar delimitadas ao sucesso da razão tecnológica, pois o êxito das novas tecnologias não é só estrondoso, mas parece possuir a consistência do que é tanto definitivo como irreversível.

O regime de validação dos procedimentos da Medicina é tão extraordinário que não pode se dar ao luxo de se importar demasiadamente com as questões chamadas “menores”, como, por exemplo, os conflitos de interesse que ocorrem nas publicações científicas revisadas por pares, mesmo quando não assumidos. Não é que os conflitos não estejam sendo avaliados, e muito menos que não gerem legítima preocupação, mas é que não há uma solução razoável para eles.

Pode gerar perplexidade, mas, sendo bem pragmático: um pesquisador subsidiado é, antes de tudo, um funcionário. Sua função é submeter-se a um regime que lhe pede, explicitamente ou não, prestação de contas. Ele precisa produzir para justificar seu custo na linha de produção/geração de tecnologia, daí que papers, que crescem em profusão geométrica, contra leitores que não dão conta de se atualizar, acabam sendo excedentes de luxo. Vale dizer: o problema da produção científica é como uma raiz que não pode ser apropriadamente desmembrada, pois, para controlá-la, precisaríamos de núcleos de pesquisa subsidiados pelo Estado – como sonhava o epistemólogo historiador da Medicina Henri Sigerist[i]-, que também teria de ser relativamente neutro e independente em suas políticas de produção e avaliação científicas. Obviamente, isso não acontece, pois, cada vez mais os Estados tendem a ser parciais em suas políticas de desenvolvimento científico assim como os programas de pesquisa.

No desenvolvimento de novas drogas, vale mais o desenvolvimento de uma molécula inédita, que tem potencial para gerar um medicamento caro, frequentemente para uma enfermidade que tem visibilidade para a opinião pública – ainda que não seja a mais prevalente ou prioritária – do que medidas de caráter sócio-educativas ou técnicas substitutas/complementares, que apresentam menor impacto midiático imediato. Considerando que os pleitos eleitorais são todos eventos de curto ou curtíssimo prazo, não fica difícil deduzir para qual lado habitualmente pendem as decisões econômicas em saúde. Esse é o atual jogo jogado pelos programas de pesquisas científicas quando se trata do mundo político dos subsídios, e não adianta nada – parafraseando Ronald Laing[ii] – fingir que não se vêo jogo que eles fingem não jogar.

Como a maior parte das experiências com novos fármacos e vacinas, assim como o próprio desenvolvimento da biotecnologia, encontra-se em mãos privadas. Não há espaço, quiçá interesse, para ultrapassar a dimensão burocrática da discussão. Ela se torna novamente refém dos vícios que as normas que os combatiam, tentavam, em vão, corrigir. O objetivo é apontar aqui osproblemas que funcionariam como pontos cegos ao próprio desenvolvimento dos debates científicos.

Na prática, isso significa que, em matéria de desenvolvimento científico, o novo apresenta sérias chances de jamais nascer, ou de ser prematuramente asfixiado dentro dos meios institucionais. Nesse sentido, os próprios santuários da inovação, as universidades e seus centros de pesquisa, acabam trabalhando contra si, pelo menos contra o sentido da sua permanência, como pensava o filósofo José Arthur Gianotti. Há, assim, um novo paradoxo, já que a finalidade das pesquisas – que não é, ou não deveria ser necessariamente ratificadora de procedimentos institucionalizados – acaba agindo contra a natureza que sempre inspirou sua criação: permitir e induzir o surgimento do novo.

A título de exemplo, isso tudo pode ser mais bem observado nas políticas públicas da área cultural: o cinema independente, e qualquer atividade artística que não seja comercial, só consegue sobreviver com apoio, retaguarda e subvenção do Estado. Este fato evidencia dois tipos de síntese: as denúncias, muitas vezes generalizações que condenam o “sistema” pelo estado de coisas, e outra, igualmente simplificadora que defende o alinhamento automático com o status quo.

Pode ser que nada de melhor tenha sido inventado, e que as normas e metodologias que aí estão, apesar de extremamente problemáticas, ainda sejam as menos absurdas. Mas será que sob elas aflorariam as revoluções científicas e, portanto, o próprio desenvolvimento científico e tecnológico? Não poderíamos responder, mas o problema apontado acima continua sem solução, já que o estruturalismo sobre o qual se apoia a produção científica mundial permanece renegando sistematicamente sua vocação fundamental.

Neste ciclo que se retroalimenta e bloqueia toda perspectiva de busca de renovação de paradigmas, quais mudanças significativas na práxis médica poder-se-ia esperar?  Colocando de outro modo: diante desse cenário quais são as chances de outros horizontes? Como acreditar na indução para a construção de uma Novíssima Medicina? Uma que obedeça a critérios e pressupostos científicos canônicos de se guiar pela Medicina baseada em evidência, orientada por ensaios clínicos randomizados, mas que simultaneamente contemplasse o que a O.M.S. preconiza como objetivo teleológico de toda terapêutica: “não só a ausência de patologia, mas o bem-estar biopsicossocial”?

Se dependêssemos da produção científica canônica e do aparato instrumental das publicações, do jeito como estão contemporaneamente concebidas, tornar-se-ia muito difícil alcançar a segunda parte do objetivo acima referido. As chances de que esta discussão frutifique estão nos lugares fora do mainstream. Tais áreas de escape são territórios não completamente mapeados que pressionam por renovações, malgrado seguem correndo por fora. É assim que caminha aquilo que outro estudioso de berçários de teorias científicas – Paul Feyrabend[i] – chamava de “pluralidade metodológica”, e que os dogmas cientificistas não compreendem. Melhor dizendo, não aceitam. Sob a perspectiva reducionista, tudo é preto no branco, é certo ou errado.

A chave para que se possa compreender melhor a força dessas regiões excluídas, pode ser exemplificada por: pesquisas de qualidade de vida em saúde, estudos observacionais, estudos de coorte e pesquisas para conhecer a necessidade das pessoas, especialmente na atenção primária à saúde. Afinal, o objetivo ético de toda pesquisa deveria ser dirigida para beneficiar os sujeitos da sociedade.

São pessoas que desejam que o atendimento médico tenha um sentido e uma direção mais abrangentes e generosos em relação às feições até aqui assumidas. É desse espaço que vem surgindo insatisfações, e uma espécie de mal-estar benévolo, que fomenta a necessidade de mudanças. Foi em função do clamor das populações, até há pouco silenciosas, que começou-se a falar de  “Medicina centrada no paciente”, e da “Medicina do sujeito”.

São pacientes com suas demandas, suas necessidades de se fazer ouvir, de expressar as interpretações de suas biografias junto às suas queixas clínicas. De avaliar, junto com seus médicos, seus próprios estados clínicos. São narrativas com detalhes que mostram a singularidade dos contextos de cada sujeito, o pedido, nem sempre verbalizado, por atenção personalizada e solidariedade. A busca por pessoas que cuidem. O desejo de que o diálogo com os médicos não esteja restrito a meras construções discursivas científicas.

Há um clamor por compartilhamento honesto sobre as dúvidas, proteção e riscos atrás de cada intervenção e procedimento. Clama-se por uma atenção focada no bem estar e na saúde mental. A qualidade da existência individual (portanto coletiva) como um categoria de sucesso terapêutico tão importante como o controle da patologia. Todas essas aspirações crescem, mesmo numa sociedade saturada por informações filtradas e nem sempre acuradas, praticada por parte do jornalismo científico. E agora, sob a recente ameaça de questionar a presença do médico e substituí-la por conselhos provenientes da tecnologia, mediada pela inteligência artificial.

É nessa fusão de horizontes que a Homeopatia se encontra com a ideia de que a atenção integral sempre fez parte do corpus de uma Medicina bem praticada, seja em qual especialidade ela estiver sendo exercida. E uma renovação da atitude dos pesquisadores pode fazer renascer o pendor natural que a ciência tem pelo desafio e pelo questionamento.

Um desafio que pode fazer romper a excessiva dependência que temos hoje da tecnociência e que recusa o descarte do que foi, supostamente, ultrapassado. Pode ser um novíssimo que agrupe ideias já rastreadas, ressurgimento de pesquisas em desuso, retomada da velha fórmula da Medicina hipocrática baseada em observação, em rituais empíricos e na investigação do que convém a cada sujeito. Sugere-se repensar as categorias propostas por Samuel Hahnemann que, mesmo dialogando com os homens de ciência da sua época, insistiu em buscar novos caminhos, sempre mais difíceis do que desfrutar das facilidades da correnteza.

No caso das propostas iniciais de Hahnemann, o resultado prático de não se deixar levar pela torrente de sensos comuns acerca dos conceitos de doença e terapêuticas foi anunciar, sempre a partir da experiência, estudo metódico e observação clínica, algumas propostas inéditas, pois não se tratava somente de aprender a totalidade dos sintomas dos pacientes, mas de observar, analisar e medicar sujeitos particulares. Entes com sofrimentos difusos extremamente pessoais.

Há similaridades entre o século XIX, com os dilemas nas ciências da saúde que vivemos aqui e agora. A prática médica contemporânea evoca a certificação obtida pelas evidências para bloquear um repensar da filosofia clínica. Mas, mesmo diante da progressiva escassez de defensores dentro das artes médicas, sobrevive um contra pensamento. Ele está alinhado à equidade, à justiça, a um atendimento que, além da moléstia, acolha com a mesma dignidade conceitual e através de anamneses compreensivas, as perturbações subjetivas das pessoas. Desta vez, porém, quem expressa o desejo por mudanças encontra-se dentro e fora das fileiras médicas.

Uma nova Medicina nada recusaria a priori, já que compreende, diante da vastidão do mal-estar contemporâneo, que não se pode dar a esse luxo. Aceita o que parece ser o mais racional, o menos invasivo e o mais de acordo com uma economia humana baseada no conhecimento da vitalidade. Uma novíssima Medicina abraçaria a necessidade de incorporar as ciências humanas às naturais, resgatando uma interlocução dispersa no tempo. Embalada pelo terceiro princípio hipocrático, essa Medicina só pode ser aquela que mais convém a cada um.

[I] SIGERIST  HE. Civilizacion y Enfermedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1946.

[II] LAING  R. Laços. Editora Vozes, Petrópolis, 1986

[I] FEYERABEND P. Límites de la Ciencia. Explicación, Reducción y Empirismo. Paidós, Barcelona, 1989.

* Texto selecionado extraído do artigo “Acerca da novíssima medicina,  homeopatia e o ethos do cuidado” publicado no livro “Ética em Homeopatia” Dantas, F. (ORG) produzido pelos membros da Câmara Técnica de Homeopatia” do CRM-SP. São Paulo, 2023.

**A propósito da discussão sobre ética e medicina, recomendo aos leitores que desejam informações precisas, que acessem o site do CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) para ler e refletir sem preconceitos sobre uma recente publicação. Trata-se de um texto que, decerto, não será unanimidade, mas contribuirá para esclarecer a sociedade sobre a Ética e as Razões da Medicina do ponto de vista da especialidade.

O livro “Ética em Homeopatia” é uma antecipação com esclarecimentos públicos que previne a desinformação tendenciosa sobre a especialidade e, principalmente, estimula a discussão sobre qual tipo de atendimento deve também estar disponível nos serviços públicos e privados do País. Retoma a discussão sobre a ética do sujeito, a importância de um programa de pesquisas, o aspecto preventivo das terapêuticas, o ethos do cuidado, o resgate da relação médico-paciente, sem uma oposição anacrônica à tecnociência.

*Abaixo Texto extraído do site do CREMESP

“Com foco especial à realidade do País, Ética em Homeopatia traz temas que refletem, por exemplo, a inserção da homeopatia no sistema público de saúde, o ensino da ética médica, direitos e deveres do médico em geral e, em particular, do médico que exerce a prática homeopática. A obra está disponível na versão digital, podendo ser acessada pelo site do Conselho, em Ebooks e Publicações e no Aplicativo Cremesp.”*

Eis os links :

https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=NoticiasC&id=6269

Acesse via youtube também: